''Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, lute pela Justiça" (Eduardo Juan Couture).
A questão do homeschooling, a sua burocracia e a necessidade de decisões judiciais mais aderentes à realidade dos titulares de direitos e às liberdades individuais, consagradas na ordem constitucional.
Recentemente, foi noticiado [1] nas mídias o caso de uma estudante, de 17 (dezessete) anos, de Sorocaba/SP, proibida de cursar Engenharia na Universidade de São Paulo (USP), não obstante a sua aprovação no vestibular, pelo fato dela ter preterido o ensino médio formal em razão da opção pelo homeschooling.
Não obstante, o embate a respeito do tema em nosso país [2], o caso é excepcional, envolvendo a burocracia e a dignidade da pessoa humana e a relação Estado/cidadão, não sendo, portanto, parâmetro para qualquer apologia quanto a sua escolha em detrimento da escolarização formal.
Até porque, não é do meu crivo este juízo. Cabe a cada núcleo familiar discernir sobre qual método de educação é mais adequado ao desenvolvimento intelectual e pedagógico de seus filhos; o modo tradicional ou a escola domiciliar.
Fato, inconteste, é a compatibilidade deste novel método de ensino com a Constituição Federal, não havendo, portanto, vedação expressa ou implícita, em seu texto, respeitando, neste contexto, a autonomia dos pais.
Feita estas considerações preliminares, analisemos os motivos e a construção lógica probatória da decisão judicial, para ilustrar a importância da interpretação teleológica das normas, como forma de extirpar os efeitos nefastos da burocracia e de sua interpretação positivista sobre os direitos individuais.
Pela leitura da sentença, os seus fundamentos residem no fato do "homeschooling" não estar previsto na legislação, não sendo, portanto, admitido como ensino apto para certificar aquela estudante.
Na decisão, a magistrada argumentou o fato da jovem não ter exibido documentos que comprovem "altas habilidades e maturidade mental para frequentar o ensino superior em detrimento da educação básica regular".
A opção seria fazer o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Porém, ele só pode ser realizado por maiores de idade.
Para a Justiça, os pais da jovem descumpriram o dever ínsito ao poder familiar de matriculá-la na rede formal de ensino obrigatório, passando a ministrar-lhe “educação domiciliar”, com amparo nos artigos 1.634, inciso I, do Código Civil c.c. o artigo 55 do Estatuto de Criança e do Adolescente. Vejamos.
O artigo 1.634, inciso I, do Código Civil dispõe que incumbe aos genitores, na qualidade de titulares do poder familiar, dirigir a “criação e educação dos filhos”.
O artigo 55 do Estatuto de Criança e do Adolescente, por sua vez, prevê expressamente que “os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”.
Contudo, o processo é instrumento de concretização da justiça, onde os seus julgadores possuem capacidade de interpretação teleológica das normas, não sendo, portanto, meros despachantes ou robôs automatizados, circunscritos ao sentido literal dos textos normativos.
A Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, no seu artigo 5º, expressamente dispõe:
“Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”
A sua edição no ordenamento jurídico tem como finalidade assegurar a qualidade das decisões judicias, de forma mais aderente à realidade do jurisdicionado e a segurança jurídica, enquanto norma de sobredireito.
Pois bem. Com amparo nesta premissa de hermenêutica, e na Constituição Federal, enquanto fundamento jurídico de validade e observância para todo o ordenamento jurídico é visível o desacerto daquela decisão; distante do bem comum e do princípio da dignidade da pessoa humana, com a devida vênia.
A concepção de bem comum, pode ser compreendida, “no conjunto de todas as condições de vida social que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana e sua sociedade" conforme exposto na encíclica Pacem in Terris (1963) de autoria do Papa João XXIII.
O Direito é meio, como ferramenta, para transformação social; obtenção de resultados mais aderentes à realidade de seus titulares. Como lecionava Rudolf Von Hering, “o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva”. Sua função é criativa e não meramente positivista, como uma técnica mecânica, onde o juiz deve ser a boca da lei.
Por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, tendo como um dos pilares a liberdade individual; a autonomia e a emancipação das pessoas em contraposição ao paternalismo e as intervenções heterônomas do Estado.
É uma liberdade de concepção mais ampla, onde permite ao homem exercer os seus direitos existenciais (âmago interior) de forma mais ampla, para sonhar, realizar suas escolhas, elaborar planos e seus projetos de vida, bem como, da sua prole.
Para, além disso, o artigo 227 da constituição federal coloca a família na frente do Estado, no dever de proceder à educação:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito (...) à educação, (...)"
Esta norma constitucional serve de fundamento ao princípio do melhor interesse da criança, consagrada no artigo 6º, do Estatuto da criança e adolescente (ECA).
Ainda que se discuta, nos termos do artigo 209 da Constituição Federal, quanto à exigência de comprovação documental das "altas habilidades e maturidade mental para frequentar o ensino superior em detrimento da educação básica regular" reprisa-se: é necessária uma interpretação teleológica da norma.
A preocupação trazida pela menor e sua família é algo genuíno, mais trabalhoso; gerir o próprio desenvolvimento educacional, com mais qualidade, e mais aderente às transformações ocorridas no mercado de trabalho, e, portanto, não obrado por mero capricho, preguiça ou conveniência.
A competência acadêmica da menor ficou comprovada de forma patente, não obstante, o fato dela não ter concluído a grade curricular de ensino obrigatória; passou em faculdade particular, tirou quase mil na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e, ainda, conquistou o 5º lugar no curso de engenharia civil da Escola Politécnica da USP, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
A relação da burocracia com o Direito, assim como em relação às normas processuais é de instrumentalidade, como meio, para a satisfação de um direito tutelado, e não como um fim em si mesmo.
Neste contexto, a burocracia é assegurada por vetusta herança que coloca no inconsciente coletivo a seguinte afirmação: não há lealdade nos atos particulares, tudo depende da chancela do Estado para ser oficializado, alimentando a falsa dicotomia e rivalidade entre Estado e particulares, no âmbito da sociedade.
Em resumo, a burocracia é alimentada pela desconfiança, que gera insegurança, carecendo de infindável ritualismo formalista, com ilusório aparato de segurança e com enorme distanciamento da Justiça, cada vez mais formal do que real.
Reconhecemos que a forma dá segurança ao debate processual e a garantia de direitos. Entretanto, quando a forma passa encontrar razão de ser em si mesma, deixando de ser instrumento, mas finalidade do processo chegamos ao formalismo, manifesto inimigo da Justiça, sendo causa e efeito da burocracia.
Os direitos fundamentais da pessoa são a base do Estado, enquanto meio para a consecução de seus resultados. Não há mais guarida para posicionamentos judiciais egocêntricos e descompromissados/distante da realidade dos seus jurisdicionados.
O indivíduo é dotado de uma dignidade ontológica, cujo Direito e o Estado devem servi-lo em toda a sua plenitude, a fim de obter as vantagens da ordem social, como próprio substrato de validade das suas existências.
Se a política de certificações inseridas no modelo escolar formal, fosse sinônimo e atestado de maturidade e habilidades acadêmicas, não seria possível a ocorrência de frequentes aprovações automáticas, ora presenciadas no cotidiano.
O apego ao diploma e certificados e o desprezo ao conhecimento são os verdadeiros vilões da nossa realidade educacional e causa do analfabetismo funcional, enfraquecendo nossa ciência e Universidades e não os novos e disruptivos métodos educacionais como o homeschooling.
Ayn Rand nos ensina que “Você pode até ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade”.
Ignorar o homeschooling, e os fins sociais a que ele se dirige, usurpando a emancipação e autonomia das pessoas é flagrantemente inconstitucional, ferindo a dignidade da pessoa humana, gerando insegurança jurídica, maior reprovação social com o judiciário e fuga de cérebros para outros países, enfraquecendo nossa ciência e Universidades, e consequentemente, nosso próprio desenvolvimento econômico e social.
Os bons exemplos obtidos por essa nova metodologia pedagógica vai servir até como uma provocação, para a necessidade de correção das inúmeras falhas do maculado sistema atual de ensino, muitas vezes, engessado e divorciado das novas tecnologias e mercados de trabalho, em razão da prática de políticas públicas inadequadas e sem qualquer tipo de monitoramento de qualidade.
O Direito deve encontrar a justiça. Mais essência e menos forma. A burocracia não pode ser punitiva da meritocracia; a constituição federal reconhece a precedência da família a qualquer organização social, até mesmo ao Estado, no dever de prover educação, garantindo neste particular, a promoção e defesa do bem comum, das liberdades individuais e da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas, a par da existência da escola tradicional.
Notas
[1] In. “Estudante de Sorocaba que adotou 'homeschooling' e foi aprovada na USP é proibida pela Justiça de iniciar curso” Fonte: G1 – Globo.com em 23/04/21. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2021/04/23/estudante-de-sorocaba-que-adotou-homeschooling-e-foi-aprovada-na-usp-e-proibida-pela-justica-de-iniciar-curso.ghtml. Capturado em 29/04/21.
[2] Em nosso ordenamento pátrio, o homeschooling não foi declarado inconstitucional, porém, quanto ao seu reconhecimento como método educacional é imprescindível à edição de uma Lei regulamentar, até o momento inexistente, conforme tese firmada pelo E. Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE nº 888.815/RS (Tema nº 822 de repercussão geral), segundo a qual: “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”.
[3] VON IHERING, Rudolf. A luta pelo Direito. Tradução de João de Vasconcelos. Rio de Janeiro, Editora forense, 1994. P. 18.
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