A boa-fé objetiva amparada com o uso da tecnologia na notificação do devedor fiduciário deve ser observada pelo Judiciário. A moderna doutrina civilista prestigia a parceria contratual e a relação de cooperação das partes envolvidas para o devido adimplemento das obrigações estipuladas no contrato.
Introdução
A história tem demonstrado que as práticas do comércio são uma alavanca propulsora do desenvolvimento das sociedades.
Os Títulos de Crédito, criados na Idade Média, possibilitaram a circulação do crédito e promoveram o incremento das transações comerciais.
As barreiras geográficas e temporais foram transpostas, fomentando o desenvolvimento do comércio e ao mesmo tempo, demandaram um sistema que oferecesse segurança e agilidade à circulação de riqueza.
A literalidade, a autonomia e a cartularidade, elementos essenciais do título de crédito e dogmas do direito cambial, viabilizaram a circulação do direito creditório com segurança e estabilidade.
Contudo, o progresso tecnológico e o acesso ao crédito, bem como as demais transações mercantis celebradas na rede mundial de computadores provocaram uma revolução da economia mundial e um desafio às estruturas vigentes, com a “desmaterialização” dos documentos: o papel foi substituído pela fita magnética de computadores e caracteres de dados.
O avanço tecnológico é inexorável e seus benefícios incontestáveis. O legislador e o ordenamento jurídico devem acompanhar e absorver essas mudanças, aperfeiçoando-se seus institutos.
Denota-se a sua importância, porquanto a utilização dos contratos e notificações eletrônicas são práticas correntes no meio empresarial e bancário e instrumentos imprescindíveis que fomentam o dinamismo e crescimento da economia.
Por outro lado, apesar de não haver norma expressa no Decreto-lei nº 911/69, não há porque deixar de aplicar o regime geral de contratos previsto pelo Código Civil, notadamente o princípio da cooperação e da boa-fé objetiva.
Esta, dentre suas funções, impõe aos contratantes não só o cumprimento da prestação obrigacional principal, mas também a observância da lealdade no cumprimento de todas as prestações acessórias que emergem de uma obrigação complexa (artigo 422 do Código Civil), especialmente, a obrigação do devedor fiduciário manter sempre atualizado o seu endereço.
O presente trabalho, de início, ressalta o conceito, a importância e o regramento jurídico dos contratos e notificações eletrônicas, para então atingirmos o seu escopo, qual seja, analisar as formas contemporâneas de constituição em mora, no âmbito das transações regidas pelo Decreto-lei 911/69.
Comércio eletrônico e contratos digitais
Conceito
O comércio eletrônico, nas palavras de Antonia Espíndola Klee [1] vem a ser:
“toda e qualquer forma de transação comercial em que as partes interagem eletronicamente, em vez de estabelecer um contato físico direto e simultâneo. Isto é, no comércio eletrônico, as relações entre as partes se desenvolvem a distância por via eletrônica”
Segundo a nominada autora [2], diferencia-se o comércio eletrônico em direto e indireto:
“O comércio eletrônico indireto consiste na celebração de contratos nos quais a declaração de vontade negocial é emitida por meios eletrônicos, embora o cumprimento das obrigações seja realizado pelos canais tradicionais; é a encomenda eletrônica de bens corpóreos, tais como livros, CDs, DVDs, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos e peças de vestuário, que são entregues fisicamente pelos serviços postais ou pelos serviços privados de entrega expressa. No comércio eletrônico direto, a oferta e a aceitação, o pagamento e a entrega dos produtos e serviços são feitos on-line. Nesse caso, o objeto dos contratos só pode ser o consumo de bens incorpóreos ou a prestação de serviços, como o download de um software, de um jogo, de uma música, de um filme, todos considerados conteúdos recreativos ou serviços de informação. O objeto da relação de consumo é intangível e pode ser transmitido no ambiente virtual. Essa modalidade (comércio eletrônico direto) permite transações eletrônicas sem descontinuidade e explora todos os mercados eletrônicos, superando as barreiras geográficas. Os bens incorpóreos serão analisados mais adiante, quando se tratar do direito de arrependimento do consumidor. O comércio eletrônico determina uma redução de custos de estabelecimento, revolucionando a relação entre consumidor e fornecedor, uma vez que o consumidor se beneficia de uma melhor condição de escolha, mediante a possibilidade de comparar uma vasta gama de ofertas”
O contrato eletrônico, conforme leciona o Professor Fabio Ulhoa [3]:
“é celebrado por meio de transmissão eletrônica de dados. A manifestação de vontades dos contratantes (oferta e aceitação) não se veicula nem oralmente, nem por documento escrito, mas pelo registro em meio virtual (isto é despapelizado)”
Há, portanto, nos atos contratuais dois diferentes suportes, como nos ensina o eminente professor [4]:
“o papel, no qual se lançam as assinaturas de punho dos contratantes (contrato-p), e o registro eletrônico, em que as partes manifestam suas vontades convergentes através de transmissão e recepção eletrônica de dados (contrato-e)”
Em face das peculiaridades próprias, o contrato eletrônico suscita algumas indagações jurídicas, no que tange a segurança e idoneidade da transação.
Como forma de garantir à lisura dos pactos virtuais a tecnologia de processamento de dados desenvolveu instrumentos de segurança que atestam a identidade do emitente e do receptor das informações e mensagens digitalizadas como a criptografia e a assinatura digital, na qual discorremos no próximo tópico.
Por sua vez, em face desta nova realidade, a Doutrina desenvolveu o principio da equivalência funcional, podendo assim ser conceituado:
“Pelo princípio da equivalência funcional, afirma-se que o suporte eletrônico cumpre as mesmas funções que o papel. Aceita essa premissa, não há razões para se considerar inválido ou ineficaz o contrato tã-só pela circunstância de ter sido registrado em meio magnético” [5]
O conceito foi formulado e consolidado pela Comissão de Direito Comercial Internacional da ONU, na elaboração da Lei Modelo sobre comércio Eletrônico, aprovada em 1996, por sua Assembleia Geral, cuja adoção é recomendada a todos os países-membros [6].
Em resumo, o contrato na forma digital representa a mudança de sua forma física, de átomos para bytes, de forma que o documento eletrônico se configuraria como espécie do gênero documento.
Contudo, para sua validade é necessário o uso da tecnologia do processamento de dados, objeto do próximo tópico.
A assinatura eletrônica como requisito essencial nos documentos virtuais (Medida Provisória 2.200/02)
Primeiramente, analisaremos o conceito de criptografia de chave pública, cuja tecnologia é empregada nas assinaturas digitais.
A criptografia é uma ciência da informática, que tem como função transformar uma informação inteligível em código secreto e vice-versa, o que elevaria o procedimento de segurança na proteção de informações.
Em outras palavras, a criptografia funciona como códigos: sem ela, um criminoso poderia interceptar a sua senha de e-mail durante o login. Com a criptografia, caso ele intercepte seu acesso, mas não tenha a chave correta, verá apenas uma lista desordenada e aparentemente confusa de caracteres, impossibilitando o acesso aos dados da vítima.
No contexto dos contratos eletrônico, a criptografia tem a função de garantir a integridade da assinatura digital, bem como, o sigilo das informações ali contidas.
As dificuldades enfrentadas na autenticação de documentos eletrônicos, conforme observa a professora Antonia Klee:
“Surgiu com as novas mídias, principalmente as eletrônicas e digitais, foi a dificuldade de colocar sobre os documentos eletrônicos a subscrição (assinatura) exigida pelo nosso sistema legal para a existência do formulário (pelo menos se a assinatura é ligada ao movimento da mão feita com a caneta sobre o papel). Foi aí que se desenvolveu a técnica da assinatura digital. Quando se almeja a celebração de um contrato por computador, um dos requisitos relevantes é certificar-se de que a pessoa que está do outro lado é realmente quem diz ser para que se possa alcançar uma efetiva eficácia probatória do contrato digital” [7]
Ademais, cumpre dizer que o artigo 219 do Código Civil, ao tratar de negócios jurídicos celebrados pela assinatura de documento como manifestação de vontade, dispõe que as “declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiros em relação aos signatários”. Não diz signatários de próprio punho.
De modo a acompanhar essa evolução na esfera contratual foi editada em 24/08/2001, a Medida Provisória n. 2.200/01[8] destinada a instituir a Infraestrutura de Chaves Públicas – ICP – Brasil.
Segue abaixo os seus principias dispositivos, atinentes ao tema:
“Art. 1º Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Art. 6º Às AC, entidades credenciadas a emitir certificados digitais vinculando pares de chaves criptográficas ao respectivo titular, compete emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados, bem como colocar à disposição dos usuários listas de certificados revogados e outras informações pertinentes e manter registro de suas operações.
Parágrafo único. O par de chaves criptográficas será gerado sempre pelo próprio titular e sua chave privada de assinatura será de seu exclusivo controle, uso e conhecimento.
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil.
§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”
É, em resumo, um sistema de validação oficial de certificação de assinaturas digitais, empregado em qualquer lugar e/ou contexto em que o comércio eletrônico esteja minimamente estabelecido.
A assinatura digital pode ser compreendida como:
“Enquanto a assinatura manuscrita é ato pessoal, físico e intransferível, a assinatura digital é uma sequência de bits, representativos de um fato, registrados em um programa de computador. É um comando que identifica a origem e o remetente, sendo muito similar à senha do cartão bancário eletrônico.
…
Apesar das diferenças estruturais, a assinatura digital cumpre as mesmas funções da assinatura física: (i) identificação do autor do documento; (ii) paternidade e vinculação às obrigações nele constantes; e (iii) função probatória” [9]
Lembremos que, a assinatura possui três funções intrínsecas ao contrato firmado: (a) declarativa, pela qual se determina quem é o autor da assinatura; (b) probatória, pela qual se determina a autenticidade do documento e a vontade nele declarada; e (c) declaratória, pela qual se determina que o conteúdo expresso no contrato representa a vontade de quem o assinou.
Nesse sentido, e tendo em vista a tecnologia inserida no mecanismo das assinaturas digitais e apoiado nas palavras de Regis Queiroz [10], conclui-se que:
“…o uso e o controle da chave privada devem ser de exclusividade do proprietário, permitindo a individualização da autoria da assinatura (função declarativa); a autenticidade da chave privada deve ser passível de verificação, a fim de ligar o documento ao seu autor (autenticação, ligada à função declaratória); a assinatura deve estar relacionada ao documento de tal maneira que seja impossível a desvinculação ou adulteração do conteúdo do documento, sem que tal operação seja perceptível, invalidando automaticamente a assinatura (função probatória). Todos esses requisitos são preenchidos pela tecnologia da criptografia de chave pública, que é empregada nas assinaturas digitais”
Veja-se, portanto, que a assinatura digital foi reconhecida em nosso Direito, constituindo-se em um fator indispensável para a eficácia dos documentos e títulos surgidos no mundo eletrônico.
A ação de busca e apreensão regida pelo Decreto 911/69
A alienação fiduciária em garantia foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Lei de Mercado de Capitais (Lei n. 4728/65, artigo 66, com a redação dada pelo Decreto-lei n. 911/69).
Como leciona o Professor Fabio Coelho [11]:
“trata-se de contrato instrumental de um mútuo, em que o mutuário-fiduciante (devedor), para garantia do cumprimento de suas obrigações, aliena ao mutuante-fiduciário (credor) a propriedade de um bem. Essa alienação se faz em fidúcia, de modo que o credor tem apenas o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa alienada, ficando o devedor como depositário e possuidor direto desta. Com o pagamento da dívida, ou seja, com a devolução do dinheiro emprestado, resolve-se o domínio em favor do fiduciante, que passa a titularizar a plena propriedade do bem dado em garantia”
Para fins de se obter a liminar de busca e apreensão, reza o artigo 3º do Decreto-Lei 911/69:
“Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada à mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)”
Neste negócio, o devedor fiduciante, ao contratar o financiamento do veículo, responsabiliza-se pela sua guarda e conservação, sendo que a partir do momento que deixa de cumprir com suas obrigações contratuais, nada mais justo e correto, que restitua o veículo à financeira e não que proceda a sua ocultação.
Não há razão econômica, moral e legal para sustentar a ocultação do bem engendrada pelos devedores dessas operações, meros possuidores diretos e não proprietários do bem ou de o Judiciário manter-se inerte ante o conflito instaurado.
Comprovação da constituição em mora – notificação via AR ou por meio eletrônico entregue no endereço informado pelo consumidor.
A caracterização da mora do devedor está delineada no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei 911/ 69, com alteração trazida pela Lei nº 13.043/ 2014:
“§ 2o A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”
Deste modo, para a comprovação da mora, neste contexto, é suficiente ao credor o envio de notificação, por via postal, com aviso de recebimento no endereço do devedor indicado no contrato.
Como em toda espécie contratual, deve ser aplicada o princípio da boa-fé objetiva.
A Quarta Turma do E. Superior Tribunal de Justiça considerou para fins de constituição em mora do devedor, a notificação não entregue com retorno “mudou-se” nas ações de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária em garantia.
O acórdão foi justificado pelo princípio da boa fé objetiva (necessidade do cliente atualizar seu endereço junto ao Banco) e que a mora decorre do simples vencimento.
Neste compasso:
“RECURSO ESPECIAL. BUSCA E APREENSÃO DE BEM OBJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. MORA EX RE. NOTIFICAÇÃO. NECESSÁRIA APENAS À COMPROVAÇÃO PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO E DEFERIMENTO DA LIMINAR. DOMICÍLIO. ATUALIZAÇÃO, EM CASO DE MUDANÇA. DEVER DO DEVEDOR. BOA FÉ-OBJETIVA. ENVIO DE NOTIFICAÇÃO PARA O ENDEREÇO CONSTANTE DO CONTRATO. FRUSTRAÇÃO, EM VISTA DA DEVOLUÇÃO DO AVISO DE RECEBIMENTO, COM ANOTAÇÃO DE MUDANÇA DO NOTIFICADO. DOCUMENTO, EMITIDO PELO TABELIÃO, DANDO CONTA DO FATO. CUMPRIMENTO PELO CREDOR DA PROVIDÊNCIA PRÉVIA AO AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO, QUE PODERIA SER-LHE EXIGÍVEL.
1. A boa-fé objetiva tem por escopo resguardar as expectativas legítimas de ambas as partes na relação contratual, por intermédio do cumprimento de um dever genérico de lealdade e crença, aplicando-se a aos os contratantes. Destarte, o ordenamento jurídico prevê deveres de conduta a serem observados por ambas as partes da relação obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação, proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre eles.
2. A moderna doutrina, ao adotar a concepção do vínculo obrigacional como relação dinâmica, revela o reconhecimento de deveres secundários, ou anexos, que incidem de forma direta nas relações obrigacionais, prescindindo da manifestação de vontade dos participantes e impondo ao devedor, até que ocorra a extinção da obrigação do contrato garantido por alienação fiduciária, o dever de manter seu endereço atualizado.
3. Por um lado, embora, em linha de princípio, não se deva descartar que o réu possa, após integrar a demanda, demonstrar ter comunicado ao autor a mudança de endereço, não cabe ao Juízo invocar a questão de ofício. Por outro lado, não há necessidade de que a notificação extrajudicial, remetida ao devedor fiduciante para comprovação da mora, em contrato garantido por alienação fiduciária, seja recebida pessoalmente por ele.
4. A mora decorre do simples vencimento, devendo, por formalidade legal, para o ajuizamento da ação de busca e apreensão, ser apenas comprovada pelo credor mediante envio de notificação, por via postal, com aviso de recebimento, no endereço do devedor indicado no contrato.
Tendo o recorrente optado por se valer do Cartório de Títulos e Documentos, deve instruir a ação de busca e apreensão com o documento que lhe é entregue pela serventia, após o cumprimento das formalidades legais.
5. Recurso especial provido” (REsp n. 1.592.422. Min. Rel. Luis Felipe Salomão. Julgado em 17 de maio de 2016. Quarta Turma do E. Superior Tribunal de Justiça).
Em face da modernidade dos dias atuais, pode o credor fiduciário distribuir o processo instruindo-o com os documentos necessários para a concessão da medida liminar de busca e apreensão do veículo e, entre eles, a notificação extrajudicial por meio de correspondência eletrônica (e-mail), no endereço informado e consentido pelo financiado no instrumento de contrato.
Vale ressaltar que a informação de endereço eletrônico é um dos requisitos exigidos na petição inicial, conforme determina o novo Código de Processo Civil em seu artigo 319, inciso II:
“Art. 319. A petição inicial indicará:
II – os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu;”
Portanto, não há qualquer óbice no ordenamento pátrio para o envio de notificação para constituição em mora eletronicamente para o endereço informado pelo financiado, frisa-se, com sua concordância expressa.
Pelo contrário, já há previsão no ordenamento jurídico considerando como válida o fornecimento de endereço eletrônico para qualquer comunicação.
Neste contexto, embora o caminho não seja convencional (via carta de papel com aviso de recebimento), o credor pode se utilizar de tecnologia que empresta autenticidade à afirmação de que o e-mail foi entregue no endereço indicado pelo devedor, como a oferecida pela empresa Rpost [12].
Basta acessar o site http://www.rpost.com para verificar-se que o e-mail foi entregue, com todos os detalhes da operação, frisa-se, por meio criptografado.
Neste sentido:
“Ação de busca e apreensão – contrato com alienação fiduciária – constituição em mora do devedor por meio de e-mail declinado pelo devedor no contrato, com a sua concordância em ser notificado por essa via, e comprovada a entrega do documento por nova tecnologia que assim valida o meio eletrônico – exame do art. 2º § 2º do decreto-lei 911, do contrato e da nova tecnologia RPost – agravo de instrumento provido” (Agravo de Instrumento nº 2008291-91.2019.8.26.0000. 33ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rel. Des. Eros Piceli. Julgado em 18/02/19).
Assim, tem-se como boa a notificação eletrônica, sob pena de violação a boa-fé objetiva que permeia os contratos e ao devido processo legal, em verdadeira defesa antecipada do réu que sequer foi citado.
Até porque, só se admite contestação após o cumprimento da liminar (Decreto-Lei nº 911/69, art. 3o, § 3º, redação Lei 10.931/04).
Da relação obrigacional firmada pelas partes e permeada pela boa-fé, portanto, emerge o dever de lealdade inclusive após o inadimplemento. Assim sendo, a partir deste momento, o devedor que deixa de cumprir com suas obrigações contratuais, deve restituir o veículo ao credor e não que proceda a sua ocultação.
Sob este aspecto, é um procedimento célere, posto a disposição do credor fiduciário para lhe preservar o direito de propriedade, ora consagrado na Constituição Federal sendo que eventuais cláusulas abusivas contratuais devem ser discutidas em revisionais e não neste procedimento regulado pelo Decreto-lei 911/69.
Contudo, não obstante a robustez do argumento calcado na consagração da boa-fé objetiva no âmbito processual (necessidade do cliente atualizar seu endereço junto ao Banco) e que a mora decorre do simples vencimento, a C. 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça determinou a suspensão de todas as ações de Busca e Apreensão em âmbito nacional envolvendo a necessidade, ou não, da assinatura do devedor no aviso de recebimento da notificação. A suspensão se deu após serem destacados os REsp's n° 1.951.888 e 1.951.662, como representativos da controvérsia para definir se, "para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente, ou não, o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual, dispensando-se, por conseguinte, que a assinatura do aviso de recebimento seja do próprio destinatário". Os recursos foram cadastrados como Tema 1.132 na corte.
Considerações finais
Os contratos e os meios de notificação eletrônicos são uma realidade que não pode mais ser ignorada. Exemplo inconteste disso é o fato do vigente Código de Processo Civil considerar os documentos eletrônicos como meio de prova típico, dissociadas da prova documental física, nos termos do artigo 439 a 441.
Há uma crescente desmaterialização do “papel” e sua substituição por meio magnético, enquanto suporte, nas mais varias relações contratuais, desde uma simples compra de passagem aérea até grandes contratos, com valores expressivos na esfera mercantil.
Deste modo, compete ao Direito, na acepção de conjunto de regras que harmonizam a convivência humana, absorver essas mudanças tecnológicas para lhe conferir reconhecimento, estabilidade, certeza e segurança nas relações jurídicas.
Para atender às necessidades do comércio atual desenvolveu-se na Comissão de Direito Comercial Internacional o princípio da equivalência funcional, segundo o qual o suporte eletrônico cumpre as mesmas funções que o papel.
Contudo, o Poder Judiciário brasileiro possui um histórico de dificuldade na absorção de novas tecnologias para incorporá-las no seu modus operandi, frutos de um desnecessário e irracional conservadorismo.
O Professor Fabio Ulhoa Coelho [13], ilustra bem essa problemática:
“Em 1929, o Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença criminal porque ela tinha sido datilografada, por considerar que o uso da máquina de escrever podia antecipar a sua publicidade. Nos anos 1980, foi indeferida a petição inicial de um mandado de segurança, porque não tinha sido observado o vernáculo. Na verdade, os primeiros editores automatizados de texto não conheciam os signos do português inexistentes no inglês, como o cedilha e o acento circunflexo. Nos anos 1990, anularam se sentenças judiciais elaboradas com utilização do microcomputador, por receio de que a reprodutibilidade do texto impedia o estudo acurado do processo a que devem se dedicar os juízes”
A vida moderna amparada pela tecnologia é intrínseca a vida humana; ao cotidiano do comércio e a rotina das pessoas, em suas necessidades primárias, como transporte, comunicação dentre outras.
Não obstante, a máquina judiciária e todo o seu arcabouço não acompanha essa modernidade e facilidade propiciada pelos meios tecnológicos.
O conservadorismo desmedido soa como retrógrado.
A tecnologia é desenvolvida e difundida para maximizar e satisfazer uma necessidade humana, muitas vezes, de modo instantâneo, como os aplicativos de mensagens disponíveis no mercado, propiciando uma melhor comodidade e qualidade de vida.
Há escassez de tempo e recursos.
A tecnologia empregada na prática dos atos processuais não se trata de uma nova espécie de processo, mas tão somente a sua modernização e inovação na esfera procedimental, como ferramenta útil a sua consecução satisfatória.
A mudança se restringe tão somente quanto ao meio e a forma como se desenvolve os atos processuais, realçando a instrumentalidade das formas no processo.
Neste contexto, realçamos a importância dos princípios de Direito na interpretação dos resultados dos atos processuais referente à citação, intimação e a notificação de mora, como o da boa-fé objetiva, cooperação e da ciência inequívoca, de modo a coibir o uso predatório, irracional e ineficiente da máquina judiciária.
Data máxima vênia, em face desta celeuma, representado pela suspensão dos processos sob esta temática (TEMA 1132 do STJ) conforme acima exposto, não está aqui se cogitando de haver uma antinomia, tampouco se fazer lobby em favor de determinado setor/segmento da atividade econômica.
Defendemos a necessidade de se interpretar a Lei de forma lógica e sistemática, com o escopo de garantir a própria unidade, coerência e coesão do ordenamento jurídico e, consequentemente, a tão almejada segurança jurídica.
O mestre Norberto Bobbio[14] apresenta os pressupostos do ordenamento jurídico: único, coerente e completo, capaz de superar todas as antinomias e lacunas verificáveis, sem perder a autonomia.
Com efeito, e, realçando-se a importância da hermenêutica na aplicação do Direito, a tese da mora aqui defendida é oriunda de uma interpretação lógica e sistemática do ordenamento jurídico.
Leciona Maximiliano[15]:
“O processo Lógico propriamente dito consiste em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento exterior, com aplicar ao dispositivo em apreço um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à lógica geral. Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta”
“Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”
Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as consequentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma” Grifos nossos.
A devida efetividade jurisdicional, bem como, a garantia fiduciária, muitas vezes é colocada em risco nos certames judiciais; estimulando a inadimplência (fato), e do ponto de vista macroeconômico [16] (consequências agregadas para a sociedade), encarecendo os financiamentos em detrimentos de todos aqueles cumpridores pontuais de suas obrigações nessa seara.
Não é incomum depararmos varias vezes com mandados judiciais devolvidos pelo simples motivo da recusa do devedor fiduciário em indicar o paradeiro do veículo.
Há, portanto, a necessidade de uma mudança de paradigmas para apreciação deste particular: O que está sendo defendido é apenas o direito de propriedade, ora consagrado na constituição federal, do credor fiduciário, sendo que eventuais cláusulas abusivas contratuais devem ser discutidas em revisionais e não neste procedimento regulado pelo Decreto-lei 911/69.
Nessa medida, a finalidade destes atos processuais, qual seja, dar ciência da demanda e dos atos, em especial, dos termos do inadimplemento do contrato, ao seu destinatário, deve ser o fim, prevalecendo-se sobre a forma, cujo auxilio da tecnologia é de substancial valor, em face da sua agilidade e precisão.
Por outro lado, é consabido que a boa-fé objetiva tem por escopo resguardar as expectativas legítimas de ambas as partes na relação contratual, por intermédio do cumprimento de um dever genérico de lealdade e crença, aplicando-se a ambos os contratantes e na ordem genérica de cooperação, proteção e informação mútua, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre eles.
Neste particular, a moderna doutrina civilista [17], ao adotar a concepção do vínculo obrigacional como relação dinâmica, revela o reconhecimento de deveres secundários, ou anexos, que incidem de forma direta nas relações obrigacionais, prescindindo da manifestação de vontade dos participantes e impondo AOS CONTRATANTES o dever de zelar pelo cumprimento satisfatório dos interesses da outra parte, vista no direito moderno como parceria contratual, em contraposição essa visão maniqueísta em torno da posição de credor.
Dessarte, para a solução da questão ora em debate, parece inevitável concluir que, até que ocorra a extinção da obrigação do contrato garantido por alienação fiduciária, é dever do devedor - até mesmo para que, v.g., o fornecedor possa enviar boletos de cobrança e bem cumprir seu dever ininterrupto de informação, imposto pelo artigo 6º, III, do CDC - manter seu endereço atualizado, constituindo o domicílio informação relevante.
Portanto, reprisa-se: para a comprovação da mora, neste contexto, é suficiente ao credor o envio de notificação, por via postal, com aviso de recebimento no endereço do devedor indicado no contrato.
Levando em consideração estes aspectos, a informação do domicílio nessa seara contratual é informação relevante para a consecução de todas as obrigações contratuais, não sendo crível, portanto, ao devedor desidioso, se furtar de tal obrigação, e muito menos, ocultar um bem que não é de sua propriedade, sob pena de abrir precedentes perigosos para a segurança jurídica.
Referências Bibliográficas e Notas
[1] [2] [7] KLEE, Antonia Espíndola Longoni. Comércio Eletrônico” Ed. RT, 1ª ed. em e-book, 2014. P. 71.
[3] [4] [5] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 03. Saraiva. Pg. 37,38 e 39.
[6] UNCITRAL. 1996. Ley modelo de la CNUDMI sobre comercio electrónico com la guia para su incorporacion al derecho interno – com la adición del Artículo 5 bis em la forma aprobada em 1998. P. 38/45 de 46. Baixada de www.un.org.
[8] BRASIL. MPV 2.200-2/2001 (MEDIDA PROVISÓRIA) 24/08/2001. Institui a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-BRASIL, transforma o instituto nacional de tecnologia da informação em autarquia, e dá outras providências. Situação: Reedição em tramitação. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm. Capturado em 24/06/18.
[9] PENTEADO, Mauro Rodrigues (coordenador). Títulos de crédito: teoria geral e títulos atípicos em face do Novo Código Civil. São Paulo: Editora Walmar, 2004, p. 197.
[10] QUEIROZ, Regis Magalhães Soares de; FRANÇA, Henrique de Azevedo Ferreira. A assinatura digital e o tabelião digital. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Org.). Direito & Internet. São Paulo: EDIPRO, 2000, p. 398.
[11] COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2003. Pg. 464.
[12] Líder global em comunicações eletrônicas seguras e certificadas, o RPost ajudou as empresas a melhorar sua segurança, conformidade e produtividade por mais de uma década. O RPost é o criador da tecnologia patenteada Registered Email ™, que fornece aos remetentes de e-mail provas de entrega legal, tempo de entrega e conteúdo exato da mensagem, sob a forma de um registro de e-mail do Recibo Registrado ™. Desde que inventou a tecnologia Registered Email em 2000, a RPost comercializou com sucesso plataformas de software para rastrear, provar, e-assinar e criptografar, usadas por mais de 25 milhões de pessoas em todo o mundo. Disponível em: https://www.rmail.com/pt. Acessado em: 17/8/19.
[13] COELHO, Fabio Ulhoa. O judiciário e a tecnologia. Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/ojudiciárioeatecnologia. Acessado em 13/05/19.
[14] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999, p. 22; PASOLD, Cesar Luiz. Ensaio sobre a ética de Norberto Bobbio. Florianópolis: Conceito, 2008.
[15] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora forense, 17ª edição. Pág. 123 e 128.
[16] “O instituto da alienação fiduciária é um instituto útil para o desenvolvimento do País. Não é só financiamento de automóveis, inclui financiamento de máquinas, equipamentos, implementos agrícolas e até imóveis. Esse instituto, na forma como é concebido, facilita o acesso ao crédito e reduz o seu custo, exatamente porque assegura ao credor mecanismos mais eficazes para a retomada do bem financiado e a recuperação do crédito.” (E. Superior Tribunal de Justiça, voto proferido no REsp 1.287.402/PR, relator p/ acórdão Ministro Antonio Carlos Ferrreira).
[17] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 212)
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