A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.
Introdução
O presente trabalho se propõe de início, a fazer uma análise técnico-jurídica da boa-fé e da eticidade das relações negociais.
Cumprida essa etapa, será possível atingir o fim almejado: (i) realçar a importância da boa-fé objetiva, como um dos princípios fundamentais do direito privado, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais; (ii) discutir e refletir sobre os limites da proteção do bem de família, tendo como casuística as decisões judiciais favoráveis a possibilidade da penhora do bem de família em nosso ordenamento jurídico.
A Boa-fé e a eticidade das relações negociais e nos certames judiciais
A confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio. É a força motriz da economia porquanto permite a troca de serviços e/ou produtos e benefícios mútuos entre as pessoas. É, de certo modo, um meio indispensável para o surgimento e conclusão de negócios.
Com a evolução da sociedade, da tecnologia e da globalização os negócios jurídicos, além de serem instrumentos econômicos, passaram a exercer uma “função social” que juntamente com a boa-fé objetiva tornaram-se princípios norteadores do Código Civil de 2002.
O ato de contratar corresponde ao valor da livre iniciativa, erigida pela Constituição de 1988 a um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito. Assim sendo, é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público [1].
Já o principio da boa-fé objetiva, pode ser compreendido como um conceito ético de conduta, moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade, pautada a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar, consoante estabelecem o artigo 422 do Código Civil e artigo 4º, inciso III, do Código de defesa do consumidor.
As suas funções, podem ser elencadas da seguinte forma:
a) integrativa, porquanto se integra a qualquer relação obrigacional, protegendo a relação com a imposição de deveres mútuos entre os participantes (artigo 422 do Código Civil);
b) interpretativa (subjetiva e objetiva) na busca de elucidar a intenção dos contratantes, ou de forma objetiva, permite a análise de suas condutas, conforme os padrões éticos exigidos;
c) corretiva, de eventuais desequilíbrios que vierem a aparecer na relação jurídica, com o fito de manter o equilíbrio contratual. Exemplo: revisão de contratos de trato sucessivo (ou de execução continuada) em decorrência de situação superveniente imprevisível ou extraordinária que torne a prestação excessivamente onerosa para uma das partes, gerando lesão objetiva por fato imprevisível.
d) limitativa dos direitos subjetivos. Veda-se o comportamento contraditório, expresso na máxima latina venire contra factum proprium non potest. Exemplo: Não pode o proprietário do bem de família invocar o amparo legal se a ele espontaneamente renunciou, por ocasião da garantia em sede de alienação fiduciária de dívida.
e) função supletiva, de criar deveres acessórios, anexos, laterais que garantam o melhor cumprimento do pactuado, independentemente da vontade das partes (informação, de cooperação, de equidade, de lealdade e o de sigilo).
Sob este aspecto, de forma a prestigiar, bem como preservar a confiança nos negócios o legislador também consagra o princípio da boa-fé objetiva e da cooperação, nos artigos 5º e 6º no novo Código de Processo Civil, ecoando, desta forma, para todo o ordenamento jurídico.
Assim sendo, compreende-se que o processo fluirá melhor existindo uma confiança na perspectiva de retidão, em sentido diametralmente oposto, a ausência de boa-fé objetiva, resulta em desconfiança, burocracia, má vontade, sendo um obste ao prosseguimento regular do feito [2].
A função social do direito de contratar – pacta sunt servanda e a boa-fé contratual
O contrato, aqui compreendido como título representando um negócio jurídico, enquanto direito subjetivo e individual, deve ser manejado de forma a não lesar os interesses superiores da sociedade, projetando o valor constitucional expresso como garantia fundamental dos indivíduos e da coletividade presente no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal.
Assim como ocorre com a propriedade, a liberdade de contratar é um direito fundamental do indivíduo inserto em princípios gerais. Daí afirmar-se que a livre iniciativa e a autonomia privada estão erigidas dentre as garantias constitucionais fundamentais e só podem ser limitadas nos termos da lei (princípio da legalidade).
A intervenção estatal, por meio do legislador (normas imperativas restritivas da autonomia), ou via Judiciário (modificando o conteúdo do contrato ou retirando-lhe a obrigatoriedade), em um sistema econômico e político que se sustenta na livre iniciativa e na propriedade privada, não pode ultrapassar os limites da excepcionalidade e razoabilidade, sob pena de se condenar a sociedade à instabilidade e estagnação econômica.
O contrato é um instrumento originário da livre vontade das pessoas, como forma de incrementar o desenvolvimento dos negócios, da acumulação e circulação de riquezas, e do progresso, devendo ser cumprido e respeitado, especialmente porque celebrado dentro dos padrões e princípios a ele impostos.
A boa-fé objetiva deixou de ser um princípio geral de direito para ser inserida textualmente no artigo 422 do Código Civil, e está visceralmente ligada à ideia de cumprimento das obrigações decorrentes do contrato, não sendo lícita a procura pela tutela jurisdicional para, injustificadamente, buscar a fuga de um dever legal, faltando com a confiança desejada e esperada pelas partes, incidindo na culpa in contrahendo, conforme assevera Nelson Nery Júnior [3]:
“Aquele que faz crer ao outro que pretende contratar ou, já havendo contratado, que as bases do contrato são aquelas esperadas pelos contratantes tem o dever de manter essas expectativas antes, durante e depois da execução do contrato, fazendo com que sejam realizadas e efetivadas. Essa consequência é imposição da boa-fé objetiva e da confiança”
Sendo assim, o juiz na aplicação do direito ao caso concreto deverá analisar sua aplicação na interpretação/contexto do negócio jurídico celebrado, no momento da constatação do abuso de direito ou na avaliação da responsabilidade pré ou pós-contratual.
Bem de família
Segundo Silvio Salvo Venosa [4], o bem de família:
“constitui-se em uma porção de bens que a lei resguarda com os característicos de inalienabilidade e impenhorabilidade, em benefício da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar”
Há duas formas de bem de família consagrados no ordenamento jurídico: involuntário (legal) e a voluntária.
A involuntária é instituída pela Lei n. 8.009/90. Conforme preceitua o seu artigo 1º, para se configurar bem de família, há necessidade de que o imóvel seja próprio da entidade familiar e que seus membros nele residam:
“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”
Trata-se de norma protetiva a família ou entidade equiparada. Assim, é imperioso, quando se invoca a proteção legal referida, demonstrar-se, não só que o imóvel é o único que possui o devedor, mas, também, que é destinado à residência familiar.
Deste modo, para a caracterização e enquadramento do imóvel na condição de bem de família são necessários, em princípio, dois requisitos: que seja próprio do casal ou da entidade familiar e que seja utilizado como residência (art. 1º).
Por sua vez, o bem de família voluntário é aquela estabelecida no código civil nos artigos 1.711 a 1722. Nesse caso, a proteção decorre da iniciativa do proprietário, que escolherá um bem e, por meio de escritura pública, designá-lo como bem de família.
Contrapondo-se a primeira, na qual a proteção é automática, decorrente da lei, nesta espécie é aquela cuja instituição decorre da vontade do seu instituidor, integrante da própria família, visando à proteção do patrimônio contra dívidas, mediante escritura pública ou testamento:
“Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”
Neste aspecto, ressalte-se que o artigo 1.715 do Código Civil prevê que o bem de família voluntário fica isento de execução por dívidas, frisa-se, posteriores à sua instituição, não fazendo efeitos com relação aos débitos preexistentes a referida gravação.
Por derradeiro, o artigo 3º da Lei n. 8.009/90 trata das exceções à impenhorabilidade do bem de família.
Casuísticas favoráveis a penhorabilidade do bem de família
O imóvel dado em garantia fiduciária – Lei n. 9.514/97
A alienação fiduciária pode ser definida como um negócio contratual/jurídico, norteado pela confiança recíproca das partes, cuja finalidade é propiciar maior facilidade ao consumidor na aquisição de bem imóvel, ou para a obtenção de empréstimo bancário, e, ao mesmo tempo, oferecer uma garantia mais eficaz aos financiadores e aos credores, protegidos pela propriedade resolúvel da coisa financiada na constância da dívida, conferindo-lhe o legislador, instrumentos processuais eficientes para a proteção de seu direito.
Por sua vez, a Lei n. 8.009/90 de cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e à sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia; mas não pode servir de meio para frustrar as legítimas pretensões dos credores.
Não obstante, a norma protetiva do bem de família, não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva.
Com efeito, a parte não pode se beneficiar da própria torpeza, ainda mais, quando deu o imóvel em garantia de alienação fiduciária, e assim, confessou a mora perante a instituição financeira credora. Isso afasta a ideia de que o bem pode ser protegido como bem de família.
Oportuno destacar nesta casuística que não está diante de penhora, mas de consolidação de propriedade fiduciária, em razão de mora confessada pelo devedor.
A penhora, consoante exaustivamente já elucidou a doutrina [5]:
“é ato executivo e não compartilha a natureza do penhor e do arresto. (…) Indubitavelmente, a penhora constitui “ato específico de intromissão do Estado na esfera jurídica” do obrigado, “mediante a apreensão material, direta ou indireta, de bens constantes no patrimônio do devedor”
Referida constrição pressupõe, assim, a invasão em patrimônio alheio, mas, no caso da alienação fiduciária em garantia, o bem em questão é do credor, não se podendo falar, por óbvio, em penhora dos próprios bens.
Desta forma, não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.
Neste sentido:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO INDICAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. CONTRATO DE FACTORING. NULIDADE. QUESTÃO PRECLUSA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL RECONHECIDO COMO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE. CONDUTA QUE FERE A ÉTICA E A BOA-FÉ.
1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual, em razão de contrato de fomento mercantil firmado entre as partes.
2. O propósito recursal é, a par da análise da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, definir se é nulo o contrato de fomento mercantil firmado entre as partes, bem ainda se é válida a alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.
3. A ausência de expressa indicação de obscuridade, omissão ou contradição nas razões recursais enseja o não conhecimento do recurso especial.
4. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pela recorrente em suas razões recursais, não obstante a oposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial.
5. Apenas em sede de recurso especial a recorrente vem defender a inexistência de nulidade do instrumento celebrado entre as partes, mostrando-se inviável a sua análise, ante a inegável ocorrência da preclusão.
6. A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.
7. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório).
8. Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.
9. Na hipótese dos autos, não há qualquer alegação por parte dos recorridos de que houve vício de vontade no oferecimento do imóvel em garantia, motivo pelo qual não se pode extrair a sua invalidade.
10. Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.
11. Não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.
12. Reconhecida, na espécie, a validade da cláusula que prevê a alienação fiduciária do bem de família, há que se admitir que o imóvel, após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, seja vendido, nos termos do art. 27 da já referida lei.
13. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.(REsp 1677015/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/08/2018, DJe 06/09/2018)”. Grifos nossos.
Nas operações de empréstimo bancário desta natureza, o devedor de forma livre, espontânea e consentida oferece o imóvel de sua propriedade como garantia fiduciária por meio de cédula de crédito bancário.
A indicação nesses termos implica em renúncia ao benefício da inalienabilidade, qual seja, o afastamento da norma protetiva do bem de família.
A fiduciante, antes da constituição da alienação fiduciária em garantia sobre o imóvel, poderia vendê-lo, se assim o quisesse, sendo que o instituto do bem de família não lhe retira a disponibilidade do patrimônio.
A propósito, pontifica Araken de Assis [6], tratando do inciso V do art. 3º da Lei 8.009/90:
“O inciso representa expressiva manifestação do princípio da disponibilidade da impenhorabilidade. Nada impede que o obrigado aliene a residência familiar para solver dívidas. Neste particular, a residência se distingue do bem de família, que é inalienável. Impenhorável que seja a residência, o proprietário pode realizar negócios jurídicos de disposição, e a regra cogita, dentre outros, da instituição de gravame real. É lícito, portanto, constituir hipoteca e predestinar a residência da própria família à execução, como decidiu a 3.a Turma do STJ. Todavia, calha assinalar que alguns sistemas jurídicos, incluindo o do Texas, proibiram tanto a alienação do bem de família, quanto a constituição de hipoteca, na suposição de que 1’hypothèque était considérée jadis comme plus dangereuse, au point de vue economique et social, que 1’aliénation directe”.385 Ao invés, a Lei 8.009/1990 autoriza ambos os negócios de disposição”
Em resumo, não pode o proprietário invocar o amparo legal se a ele espontaneamente renunciou. Ressalte-se que o acolhimento da sua pretensão em juízo ofenderia o princípio que veda o comportamento contraditório, expresso na máxima latina venire contra factum proprium non potest.
É possível a penhora de bem de família dado em garantia hipotecária pelo casal quando os cônjuges forem os únicos sócios da pessoa jurídica devedora
Cinge-se a controvérsia a definir sobre a possibilidade, ou não, de penhora do imóvel dado em garantia hipotecária de dívida contraída em favor de pessoa jurídica, da qual os únicos sócios da empresa executada são cônjuges e proprietários do bem, em razão da presunção do benefício gerado aos integrantes da família.
Inicialmente, cumpre salientar que o acórdão proferido pela Terceira Turma no REsp n. 988.915, entendeu que "é possível a penhora de imóvel dado em garantia hipotecária de dívida contraída em favor de pessoa jurídica da qual são únicos sócios os cônjuges, proprietários do imóvel, pois o benefício gerado aos integrantes da família nesse caso é presumido".
Já o acórdão proferido no REsp 988.915/SP (Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 08/06/2012) entendeu que "somente é admissível a penhora do bem de família hipotecado quando a garantia foi prestada em benefício da própria entidade familiar, e não para assegurar empréstimo obtido por terceiro".
Sobre o tema, discutido em sede de embargos de divergência prevalece nesta Corte o entendimento de que o proveito à família é presumido quando, em razão da atividade exercida por empresa familiar, o imóvel onde reside o casal (únicos sócios daquela) é onerado com garantia real hipotecária para o bem do negócio empresarial.
Nesse sentido, constitui-se ônus dos prestadores da garantia real hipotecária, portanto, comprovar a não ocorrência do benefício direto à família, mormente tendo em vista que a imposição de tal encargo ao credor contrariaria a própria organicidade hermenêutica, inferindo-se flagrante também a excessiva dificuldade de produção probatória.
Deste modo, pode-se assim sintetizar o tema: a) o bem de família é impenhorável quando for dado em garantia real de dívida por um dos sócios da pessoa jurídica, cabendo ao credor o ônus da prova de que o proveito se reverteu à entidade familiar; e b) o bem de família é penhorável quando os únicos sócios da empresa devedora são os titulares do imóvel hipotecado, sendo ônus dos proprietários a demonstração de que não se beneficiaram dos valores auferidos. (EAREsp 848.498-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 25/04/2018, DJe 07/06/2018).
A penhorabilidade do bem de residência do fiador
O Supremo Tribunal Federal concluiu recentemente (08/3/2022) o julgamento do Tema 1.127 (RE 1.307.334), decidindo-se pela penhora de bem de família de fiador em contratos de locações comercial ou residencial.
Para o Relator, Ministro Alexandre de Moraes, o direito à moradia tem fundamento na dignidade da pessoa humana. Porém, não obstante a benesse ao bem de família (Lei 8.009/90, art. 3º), a fiança concedida em contrato de locação em determinadas situações, permite a penhora de bem de família diante de sua constitucionalidade.
Esse julgado do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral, coloca fim nessa longa discussão judicial sobre a impenhorabilidade ou não do bem de família. Portanto, por ser de livre e espontânea vontade do proprietário de imóvel, este renuncia à impenhorabilidade de seu bem de família, conferindo a possibilidade de constrição de seu imóvel em razão de dívida do locatário. Para o Ministro Relator, “a fiança afigura-se a garantia que melhor propicia ganhos em termos da promoção da livre iniciativa, da valorização do trabalho e da defesa do consumidor”. Surge, daí, a razoabilidade da livre disposição do bem de família sob a forma de como melhor aprouver ao seu proprietário.
Esta decisão é um exemplo atual de elevação do princípio da autonomia da vontade no Direito Privado face à proteção das garantias constitucionais.
Bem de família suntuoso pode ser penhorado
Em decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) flexibilizou o conceito de bem de família e aceitou a penhora e alienação de bem imóvel considerado suntuoso, desde que se reservasse valor para a compra de outro imóvel de menor valor.
No caso em questão, se demandava o reconhecimento de imóvel de alto valor como bem de família e, por conseguinte, a sua proteção contra penhora aplicável ao bem familiar.
O entendimento foi da 12º Câmara de Direito Privado do TJSP, que divergiu da interpretação dada pelo magistrado de 1º grau, que havia reconhecido a proteção do bem de família a imóvel de alto valor. Para o magistrado de 1º grau, o imóvel deveria ser preservado, independentemente do seu valor de mercado, dado ser este o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1351571/SP). Assim, a penhora não poderia ocorrer dada a interpretação literal e restritiva da Lei nº 8.009/90.
O TJSP, todavia, entendeu que imóvel suntuoso (de alto valor), ainda que reconhecido como bem de família, pode ser penhorado e alienado, desde que seja reservada quantia do valor arrecadado com a alienação para que a família adquira outro imóvel de menor valor para sua residência. Para o tribunal, não se pode permitir que a proteção do bem de família, instituída pela Lei nº 8.009/1990, seja deturpada, para assegurar que imóveis de elevadíssimo valor permaneçam intocáveis, servindo de blindagem de grandes patrimônios, em prejuízo ao credor.
Vale transcrever a ementa da decisão:
“O imóvel de alto valor, ainda que reconhecido como bem de família, pode ser penhorado e alienado, desde que com a garantia de reserva, ao devedor ou ao terceiro meeiro, de parte suficiente do valor alcançado, para que possa adquirir outro imóvel que propicie à família moradia talvez não tão luxuosa, mas tão digna quando a proporcionada pelo bem constrito”. (Apelação nº 1094244-02.2017.8.26.0100, Relator: Castro Figliolia, Julgamento: 02/09/20, 12º Câmara de Direito Privado do TJSP).
Em seu voto, assim se manifestou o relator:
“Diante desse quadro, a alienação do bem de família certamente propiciará reserva de valor mais do que suficiente para aquisição de moradia apta a garantir padrão de conforto equivalente àquele que a apelada dispõe no imóvel penhorado talvez, mas não certamente, um pouco mais modesto”.
No caso decidido pelo TJSP, as referências à Lei nº 8.009/1990 deixa claro que se tratava de bem de família legal, ou seja, o proprietário não havia instituído o imóvel como bem de família por meio de escritura pública. Talvez se houvesse feito tal instituição voluntária, o desfecho da ação seria outro. É mais custoso, mas nos parece ser mais eficaz em termos de proteção.
O professor Cândido Rangel Dinamarco [7] , afirma que:
"não se legitima, por exemplo, livrar da execução um bem qualificado como impenhorável, mas economicamente tão valioso que deixar de utilizá-lo "in executivis" seria um inconstitucional privilégio concedido ao devedor. Pense-se na hipótese de um devedor milionário mas sem dinheiro visível ou qualquer outro bem declarado, e que viva em luxuosa mansão; esse é o seu bem de família, em tese impenhorável por força da lei, mas que, em casos como esse, não se justificaria ficar preservado por inteiro".
O C. Superior Tribunal de Justiça confirmou a penhora de parte de imóveis, autorizando o seu desmembramento para retirar do conceito de bem de família e, portanto, da impenhorabilidade, o que excede razoavelmente à normalidade de uma moradia, no que apresenta-se como suntuoso, como a parte em que o devedor construiu área de lazer com jardins, piscina, quadra de tênis e sauna, vinculada à edificação principal, como se vê dos seguintes arestos:
"PROCESSUAL CIVIL. LEI 8.009/90. BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL RESIDENCIAL. DESMEMBRAMENTO. POSSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS DE CADA CASO. DOUTRINA. PRECEDENTE. RECURSO DESACOLHIDO.
I - Como residência do casal, para fins de incidência da Lei 8.009/90, não
se deve levar em conta somente o espaço físico ocupado pelo prédio ou casa, mas também as suas adjacências.
A própria lei afirma que "a impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza...
II - Admite-se, no entanto, a penhora de parte do imóvel quando possível o seu desmembramento sem descaracterizá-lo, levando em consideração, com razoabilidade, as circunstâncias e peculiaridades do caso" (REsp. 326171/GO- Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira - Publ.DJ 22/10/01).
"PROCESSO CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - DESCONSTITUIÇÃO DE PENHORA - BEM DE FAMÍLIA. PISCINA LOCALIZADA EM IMÓVEL CONTÍGUO -PENHORABILIDADE. I - Se a residência do devedor abrange vários lotes contíguos e alguns destes suportam apenas acessões voluptuárias (piscina e churrasqueira) é possível fazer com que a penhora incida sobre tais imóveis, resguardando-se apenas aquele em que se encontra a casa residencial. II - Imóveis distintos, ainda que contíguos, podem ser desmembrados, para que se faça a penhora. III - Interpretação teleológica da Lei 8.009/90, Art. 2", parágrafo único, para evitar que o devedor contumaz se locuplete e utilize o beneficio da impenhorabilidade, como instrumento para tripudiar sobre o credor enganado" (REsp. 624355/SC - Rei. Min. Humberto Gomes de Barros - Publ. 28/05/07)
Na verdade, a forma genérica de levar a cabo a garantia de lei é a impenhorabilidade, ou seja, a impenhorabilidade é o mecanismo do direito de moradia. No entanto, se em parte a penhorabilidade é possível sem eliminar o direito de moradia em outro imóvel, é perfeitamente possível que se dê ao devedor um imóvel de menor valor para, também por justiça, satisfazer o direito do credor.
Cuida-se de remédio que vem se impondo paulatinamente e tem se revelado a forma mais adequada de equilibrar as relações entre o credor e o devedor, nas execuções onde se acena com a impenhorabilidade.
A Lei 8.009/90 possui cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar a residência do devedor e de sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia; mas não pode o devedor servir-se do instituto do bem de família como meio para frustrar legítima pretensão de seus credores, subtraindo da execução imóvel de elevado valor.
Tratando-se de imóvel que tenha elevado valor e que em sua matrícula abarca na realidade dois imóveis, como tal pode e deve ser ele objeto de penhora; devendo, entretanto, extrair, quando da venda ou arrematação, um valor que proporcione ao executado a aquisição de um imóvel de porte médio, no mesmo município de sua localização, capaz de assegurar ao devedor e à sua entidade familiar condições de sobrevivência digna, mas sem suntuosidade.
Considerações finais
A boa fé objetiva impõe aos contratantes não só o cumprimento da prestação obrigacional principal, mas também a observância da lealdade no cumprimento de todas as prestações acessórias que emergem de uma obrigação complexa (art. 422 do CC), o que se refere à função integrativa do princípio da boa-fé contratual, que traduz a noção de deveres anexos.
A Doutrina [8] não diverge:
“O conteúdo da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa-fé. Com isso, estamos afirmando que a prestação principal do negócio jurídico (dar, fazer e não fazer) é um dado decorrente da vontade. Os deveres principais da prestação constituem o núcleo dominante, a alma da relação obrigacional. Daí que sejam eles que definem o tipo do contrato. Todavia, outros deveres se impõem na relação obrigacional, completamente desvinculados da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também conhecidos na doutrina como deveres anexos, deveres instrumentais, deveres laterais, deveres acessórios, deveres de proteção e deveres de tutela. Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo”
A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.
Voltando a tema do negocio fiduciário de imóveis, e, partindo da premissa acima exposta, não pode o devedor ofertar bem imóvel em garantia de uma dívida que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão.
Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.
Em resumo, não pode o proprietário invocar o amparo legal se a ele espontaneamente renunciou. Ressalte-se que o acolhimento da sua pretensão em juízo ofenderia o princípio que veda o comportamento contraditório, expresso na máxima latina venire contra factum proprium non potest.
A devida efetividade jurisdicional, bem como, a garantia fiduciária, muitas vezes é colocada em risco nos certames judiciais, estimulando a inadimplência, encarecendo os financiamentos em detrimentos de todos aqueles cumpridores pontuais de suas obrigações nessa seara.
A regra do bem de família aplica-se às situações de uso regular do direito. A fraude e a má-fé do devedor conduzem à ineficácia da norma protetiva em discussão, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico.
O devedor não deve ser apenas portador de direitos e também, cumpridor de obrigações no âmbito civil. Para ser merecedor da tutela jurisdicional deve provar sua boa-fé, agindo de forma diligente e cautelosa em seus atos comerciais.
Reprisa-se: a confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio. É a força motriz da economia porquanto permite a troca de serviços e/ou produtos e benefícios mútuos entre as pessoas. É, de certo modo, um meio indispensável para o surgimento e conclusão de negócios.
Com efeito, a boa-fé do devedor é determinante para que se possa socorrer da regra protetiva do art. 1º da Lei 8.009/90, devendo ser reprimidos quaisquer atos praticados no intuito de fraudar credores, de obter benefício indevido ou de retardar o trâmite do processo de cobrança/execução de dívidas.
A boa-fé objetiva foi consagrada como um dos princípios fundamentais do direito privado, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais. Todavia, não se restringe a esta área do Direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.
O instituto do bem de família é uma medida de garantia da dignidade de uma família, protegendo e resguardando a sua moradia. Refere-se a um bem imóvel, cuja a família instala domicílio, tornando esse imóvel, impenhorável e inalienável, assegurando um lar à entidade familiar. Dessa maneira, o bem de família garante à pessoa do devedor um patrimônio mínimo, retirando-o órbita da executoriedade, sem afetar assim, o direito material do crédito, como a casuística dos imóveis suntuosos, acima apontado.
Conclui-se, portanto, que a norma protetiva bem de família não é irrestrita, porquanto a confiança e a boa-fé são pressupostos de todo e qualquer negócio, e, portanto, passíveis de serem prestigiadas pela lei e sua hermenêutica.
Levando em consideração estes aspectos há a necessidade de uma cognição mais exauriente nos julgamentos, quanto às peculiaridades das garantias da execução, visando a proteger a essência do bem de família, qual seja, à dignidade da moradia, capaz de assegurar ao devedor e à sua entidade familiar condições de sobrevivência digna, mas sem suntuosidade, elevando-se, em contrapartida a autonomia da vontade (disponibilidade do bem pelo fiador) e a efetividade das contendas judiciais em contraposição às fraudes a execução.
Notas e referência bibliográficas
[1] REALE, Miguel. A função social dos contratos. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Acessado em 29/08/2017.
[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil Artigo por Artigo. 1. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[3] JUNIOR, Nelson Nery. Código Civil comentado. 2ª edição. Editora RT. Página 339.
[4] VENOSA Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo, 5º Volume, Ed. Saraiva, 3ª ed., pg. 550 e 1º volume, pg. 345.
[5] [6] ASSIS, Araken de. Manual da Execução, ed. RT, 2ª ed. em e-book, 2017, item 266.
[7] DINAMARCO, Cândido Rangel. "Instituições de Direito Processual Civil, vol.V, Campinas, Millennium, 2001, item 1.541.
[8] ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência, Manole, 6ª ed., p. 489.
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